Era uma vez enamorados separados por alguns quilômetros. Tiveram então uma ideia de aproximarem-se um pouco mais através do compartilhamento de suas experiências preferidas: os saberes e os sabores!
Joel e Manoela gostam muito, mas muito mesmo de comer. É um de seus principais programas e também nesta arte são parceiros. Enquanto saboreiam apetitosos pratos, costumam conversar sobre tudo que é assunto... filmes, livros, músicas, cinema, teatro, vida acadêmica, televisão, escola, religião, jogos, futebol, viagens, lugares, idiomas... a lista é imensa. As conversas são leves, soltas, livres, sem o rigor científico-especialista. São as suas impressões sobre esses e outros temas, o que pensam e repensam deles. E assim resolveram registrar um pouco disto neste blog, seguindo a mesma leveza com que conduzem seus diálogos. Com saberes e sabores, a vida ganha um gosto e significado.
Ela, professora de Matemática, mora no DF. Ele é estudante de Pedagogia e mora no CE. Além do DF e CE, claro, já estiveram juntos no RN, em SP e GO, e conheceram algumas iguarias culturais que gostariam de registrar e dividir.
Assim, a proposta deste blog é falar sobre temas que tragam saberes e sabores. Sim, saberes e sabores! A palavra "saber" vem do latim Sapor, que quer dizer "sabor" e se relaciona com o verbo Sapere, que tanto pode significar “ter gosto”, “ser saboroso” como “conhecer”, “compreender”, “ter inteligência”.
Venha, então, saborear com a gente!
Obs: A toalha que forra a capa desse blog é uma linda pintura de mesa em uma simpática e agradável lanchonete em Pirenópolis - GO, que possui empadas inesquecíveis! Mas essa história será melhor contada em breve...
Para iniciar nossa viagem e trazer um porquê de nossa vontade de conversar com vocês, ninguém melhor para falar de sabor e saber que Rubem Alves!
O SABOR DO SABER: A ARTE DE
PRODUZIR FOME
Rubem Alves
Adélia Prado me ensina pedagogia. Diz ela: "Não quero faca nem
queijo; quero é fome". O comer não começa com o queijo. O comer começa na
fome de comer queijo. Se não tenho fome é inútil ter queijo. Mas se tenho fome
de queijo e não tenho queijo, eu dou um jeito de arranjar um queijo...
Sugeri, faz muitos anos, que, para se entrar numa escola,
alunos e professores deveriam passar por uma cozinha. Os cozinheiros bem que
podem dar lições aos professores. Foi na cozinha que a Babette e a Tita
realizaram suas feitiçarias... Se vocês, por acaso, ainda não as conhecem,
tratem de conhecê-las: a Babette, no filme "A Festa de Babette", e a
Tita, em "Como Água para Chocolate". Babette e Tita, feiticeiras,
sabiam que os banquetes não começam com a comida que se serve. Eles se iniciam
com a fome. A verdadeira cozinheira é aquela que sabe a arte de produzir fome
...
Quando vivi nos Estados Unidos, minha família e eu visitávamos, vez por
outra, uma parenta distante, nascida na Alemanha. Seus hábitos germânicos eram
rígidos e implacáveis.
Não admitia que uma criança se recusasse a comer a comida que era servida. Meus
dois filhos, meninos, movidos pelo medo, comiam em silêncio. Mas eu me
lembro de uma vez em que, voltando para casa, foi preciso parar o carro para
que vomitassem. Sem fome, o corpo se recusa a comer. Forçado, ele vomita.
Toda experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva.
É a fome que põe em funcionamento o aparelho pensador. Fome é afeto. O pensamento
nasce do afeto, nasce da fome. Não confundir afeto com beijinhos e carinhos.
Afeto, do latim "affetare", quer dizer "ir atrás". É o
movimento da alma na busca do objeto de sua fome. É o Eros platônico, a fome
que faz a alma voar em busca do fruto sonhado.
Eu era menino. Ao lado da pequena casa onde morava, havia uma casa com
um pomar enorme que eu devorava com os olhos, olhando sobre o muro. Pois
aconteceu que uma árvore cujos galhos chegavam a dois metros do muro se cobriu
de frutinhas que eu não conhecia.
Eram pequenas, redondas, vermelhas, brilhantes. A simples visão daquelas
frutinhas vermelhas provocou o meu desejo. Eu queria comê-las.
E foi então que, provocada pelo meu desejo, minha máquina de pensar se
pôs a funcionar. Anote isso: o pensamento é a ponte que o corpo constrói a fim
de chegar ao objeto do seu desejo.
Se eu não tivesse visto e desejado as ditas frutinhas, minha máquina de pensar
teria permanecido parada. Imagine se a vizinha, ao ver os meus olhos desejantes
sobre o muro, com dó de mim, tivesse me dado um punhado das ditas frutinhas, as
pitangas. Nesse caso, também minha máquina de pensar não teria funcionado. Meu
desejo teria se realizado por meio de um atalho, sem que eu tivesse tido
necessidade de pensar. Anote isso também: se o desejo for satisfeito, a máquina
de pensar não pensa. Assim, realizando-se o desejo, o pensamento não acontece.
A maneira mais fácil de abortar o pensamento é realizando o desejo. Esse é o
pecado de muitos pais e professores que ensinam as respostas antes que tivesse
havido perguntas.
Provocada pelo meu desejo, minha máquina de pensar me fez uma primeira
sugestão, criminosa. "Pule o muro à noite e roube as pitangas."
Furto, fruto, tão próximos... Sim, de fato era uma solução racional. O furto me
levaria ao fruto desejado. Mas havia um senão: o medo. E se eu fosse pilhado no
momento do meu furto? Assim, rejeitei o pensamento criminoso, pelo seu perigo.
Mas o desejo continuou e minha máquina de pensar tratou de encontrar
outra solução: "Construa uma maquineta de roubar pitangas". McLuhan
nos ensinou que todos os meios técnicos são extensões do corpo. Bicicletas são
extensões das pernas, óculos são extensões dos olhos, facas são extensões das
unhas.
Uma maquineta de roubar pitangas teria de ser uma extensão do braço. Um
braço comprido, com cerca de dois metros. Peguei um pedaço de bambu. Mas um
braço comprido de bambu, sem uma mão, seria inútil: as pitangas cairiam.
Achei uma lata de massa de tomates vazia. Amarrei-a com um arame na
ponta do bambu. E lhe fiz um dente, que funcionasse como um dedo que segura a
fruta. Feita a minha máquina, apanhei todas as pitangas que quis e satisfiz meu
desejo. Anote isso também: conhecimentos são extensões do corpo para a
realização do desejo.
Imagine agora se eu, mudando-me para um apartamento no Rio de Janeiro,
tivesse a idéia de ensinar ao menino meu vizinho a arte de fabricar maquinetas
de roubar pitangas. Ele me olharia com desinteresse e pensaria que eu estava
louco. No prédio, não havia pitangas para serem roubadas. A cabeça não pensa
aquilo que o coração não pede. E anote isso também: conhecimentos que não são
nascidos do desejo são como uma maravilhosa cozinha na casa de um homem que
sofre de anorexia. Homem sem fome: o fogão nunca será aceso. O banquete nunca será
servido.
Dizia Miguel de Unamuno: "Saber por saber: isso é inumano...".
A tarefa do professor é a mesma da cozinheira: antes de dar faca e queijo ao
aluno, provocar a fome... Se ele tiver fome, mesmo que não haja queijo, ele
acabará por fazer uma maquineta de roubá-los. Toda tese acadêmica deveria ser
isso: uma maquineta de roubar o objeto que se deseja...
Fonte: Folha de S.Paulo
(suplemento Sinapse).